Afinal, The Bear é uma comédia?
A série "The Bear" conquistou o prêmio de melhor comédia no Globo de Ouro. No entanto, nas redes sociais, surgiu uma questão intrigante: será que "The Bear" é genuinamente uma comédia?
Historicamente, pelo menos desde 2015, premiações de prestígio, como o Globo de Ouro, seguem a prática de categorizar qualquer programa com duração inferior a 30 minutos na categoria de comédia. Curiosamente, a definição de “comédia” nessas premiações vai além do gênero em si e torna-se uma questão mais voltada para o formato. Qualquer obra que se encaixe no limite temporal de meia hora, ou algo próximo disso, é automaticamente classificada como comédia, independentemente de abordar temas sérios, como cozinheiros com tendências suicidas e mommy issues. Contudo, mesmo diante desse critério peculiar, resta a pergunta: “The Bear” pode ser considerada uma comédia no que diz respeito ao seu verdadeiro gênero? Yes, chef.
Em uma entrevista para o Salon, o comediante Bob Odenkirk alertou os roteiristas aspirantes a “sair da comédia, porque ela está prestes a entrar em colapso”. Segundo ele, a comédia de esquetes, por exemplo, está vivendo um momento de destaque - com o YouTube, Tik Tok - mas o mercado está se tornando saturado. Odenkirk sugere que, uma vez que o mercado se cansar dos esquetes curtos, pode vir a se interessar por material mais longo e dramático. “Eu realmente acredito que, após os esquetes, vem a narrativa”. E é exatamente isso que está acontecendo.
“The Bear” é uma comédia que leva o drama a sério, e essa tendência está ditando o tom para muitas das novas comédias que estão surgindo. Essas produções exploram questões desconfortáveis e dolorosas que estão por trás de qualquer boa piada. Não que essas comédias irão substituir as típicas sitcoms centradas em piadas. No entanto, é provável que estejamos testemunhando uma mudança na indústria, semelhante àquela que remodelou o drama televisivo após o impacto de “Os Sopranos”. Essa evolução pode indicar uma crescente apreciação por narrativas mais complexas e profundas, mesmo dentro do gênero de comédia, sugerindo que o público está cada vez mais receptivo a abordagens inovadoras e conteúdo que vai além das convenções tradicionais. A fragmentação das audiências televisivas na era do cabo e do streaming proporcionou aos escritores de comédia e humoristas a oportunidade de explorar o significado fundamental do que é ser uma comédia. Nem todo programa de comédia tem a obrigação de ser o próximo “Seinfeld” e, portanto, não precisa mais se conformar a fórmulas repetitivas. Isso abre espaço para a experimentação, permitindo que a comédia tenha um desenvolvimento dramático mais aprofundado. Em outras palavras, estamos possivelmente vivendo em uma era “pós-comédia”.
Assim como o pós-rock, a pós-comédia incorpora elementos do humor, mas não se concentra exclusivamente em criar resultados cômicos tradicionais. Em vez disso, há uma ênfase no tom, impacto emocional, narrativa, discurso e forma. O objetivo de ser “engraçado” não é mais a única preocupação. Vale ressaltar que isso não significa que essas produções sejam dramas disfarçados de comédias. Estruturalmente, essas peças humorísticas continuam sendo comédias, embora exploradas de uma maneira não convencional. Um exemplo é o especial de comédia “Inside”, gravado durante a pandemia, do comediante Bo Burnham. Ao cortar o elemento da plateia, ele desafia as convenções, mas, inegavelmente, trate-se de um especial de comédia. O texto é humorístico, evidenciando como a experimentação no gênero pode ocorrer não apenas no conteúdo, mas também na própria estrutura da apresentação.
“Atlanta”, criada e estrelada por Donald Glover, é um excelente exemplo também de uma série que raramente se preocupa em fornecer risadas óbvias, em tom de claque. Em certo sentido, é uma produção bastante séria, onde o humor se encontra mais no tom da narrativa do que nas ações diretas dos personagens ou na superfície da história. Outro caso é “Barry”. E, claro, “BoJack Horseman”, que apresenta episódios inteiros que se desdobram como dramas sem a presença do riso explícito. No entanto, mesmo nessas situações mais sérias, a peculiaridade de assistir a um cavalo falante serve como um lembrete constante do elemento único (e muitas vezes absurdo) da comédia. Essas séries exemplificam a capacidade de transcender os limites do gênero, incorporando nuances e explorando uma gama mais ampla de emoções e possibilidades. “The Bear” segue um caminho semelhante, como evidenciado no sexto episódio da segunda temporada, intitulado “Fishes”. Neste episódio, somos transportados quase cinco anos antes dos eventos principais da temporada, mergulhando em um jantar dramático e traumático na casa de infância de Carmy durante a Ceia dos Sete Peixes, um evento tradicional ítalo-americano realizado na véspera de Natal. A estrutura desse episódio se assemelha a uma grande piada, ainda que tenha provocado um ataque cardíaco na maioria dos espectadores. Um elemento crucial na comédia é a criação de tensão, e “The Bear” utiliza essa ferramenta de maneira magistral. O que torna esse episódio notável é a habilidade da série em explorar drama dentro da tensão da piada. Ao desenvolver a trama em meio a uma atmosfera carregada de tensão, a série prepara o terreno para o punchline, o clímax humorístico. Neste caso, a tensão atinge seu ápice em uma briga de garfos, um momento que, mesmo em sua peculiaridade, é indiscutivelmente engraçado.
A transformação no cenário televisivo tem dissolvido as distinções tradicionais que costumavam separar comédia e drama. Antigas dicotomias, como herói versus anti-herói, estrutura clássica versus narrativa experimental e a duração do programa, perderam relevância. Esta mudança não se limita a programas de uma hora ou meia hora; estamos trilhando um caminho onde os rótulos “comédia” e “drama” não nos dizem mais nada de útil sobre um programa em si. Será necessário pensar sobre eles, conviver com eles, para descobrir o que são. Enquanto os dramas não precisam provar sua natureza, as comédias enfrentam o desafio constante de serem engraçadas o tempo todo para provar seu valor. Se as piadas não surgirem rapidamente, se dois personagens compartilharem uma cena longa sem risos, ou se ninguém for sarcástico por 30 segundos, a ira dos “fãs de comédias” é inevitável. É crucial abraçar uma visão mais ampla do potencial da comédia, desafiando a definição tradicional do que constitui uma comédia, especialmente em relação à ambígua classificação de comédia-drama. A “comédia” não está presa à obrigação de ser sempre engraçada; pode explorar nuances humanas, incluindo aspectos mais sérios e falhas pessoais. Não se trata apenas da quantidade de piadas; uma série pode ser considerada uma comédia ao manter elementos humorísticos, mesmo que não seja constantemente engraçada. Vale recordar que, na Grécia antiga, “comédias” eram peças que tinham um final feliz, independente da carga emocional dos eventos. O termo “comédia” não estava restrito ao humor moderno, mas sim à estrutura narrativa e à conclusão positiva das histórias.
Num futuro ideal, talvez não precisemos mais dessa categorização dualista. Poderíamos esperar, ao ouvir a palavra “comédia”, uma narrativa que abraça pausas e piadas, onde o absurdo inteligente e o substancial coexistem harmoniosamente. Contudo, até atingirmos esse ponto, é crucial reconhecer que limitar as comédias à busca exclusiva do riso é subestimar seu potencial artístico e narrativo. A subjetividade do humor torna-o um desafio para atrair a audiência, mas a verdadeira medida do sucesso reside na qualidade da construção narrativa. Nesse contexto, séries como “The Bear” destacam-se não apenas pelas piadas, mas pela ambição dramática e desenvolvimento cuidadoso. Até lá, se você acha que as comédias devem apenas se ocupar de ser engraçadas, tudo bem, mas você está aproveitando muito pouco do que a comédia pode oferecer.
Escrito por Daniel Duncan